domingo, 27 de dezembro de 2009

Reescrituras - Adriana Lisboa

REESCRITURAS


Adriana Lisboa

Apresentado com o título de Reescrituras pós-modernas

no VIII Congresso Internacional Abralic, Belo Horizonte, 2003.

Em 1863, Edouard Manet pintou um quadro chamado Déjeuner sur l'herbe, hoje célebre, na época um célebre escândalo. Mais tarde, Picasso e outros artistas "reescreveram" a tela de Manet em obras não menos famosas. Na verdade, a genealogia desse instigante almoço sobre a relva recua à Renascença, "citando" uma gravura feita em 1520 segundo um desenho de Rafael - que, ao que tudo indica, inspirara-se numa composição romana do século III D.C., pormenor de um sarcófago da Villa Medici.

O gesto da reescritura, em literatura e arte, vem se verificando em momentos históricos distintos e com características as mais variadas. Florencia Garramuño, que estudou processos de reescritura na ficção da Argentina, do Brasil e do Uruguai entre os anos de 1981 e 1991, afirma tratar-se de "uno de los conceptos más lábiles y escurridizos para el análisis de fenómenos culturales, y ha recibido a su vez múltiples definiciones y reescrituras a lo largo de la historia de la crítica cultural."¹

Fechando um pouco o foco, o que pretendo aqui é observar, num rápido passeio pelos bosques da recente ficção brasileira, duas formas distintas pelas quais o gesto da reescritura se opera. Para tanto, recorro à leitura de Em liberdade, de Silviano Santiago, e Lúcia, de Gustavo Bernardo.

Jean-François Lyotard amplifica a noção de reescritura em L'Inhumain, aplicando-a na definição do próprio tempo em que vivemos ao afirmar que a pós-modernidade é "la réecriture de quelques traits revendiqués par la modernité, e d'abord de sa prétention à fonder sa légitimité sur le projet d'émancipation de l'humanité tout entière par la science et la technique." Numa das acepções do termo "reescritura" por ele salientadas, Lyotard remete-se ao que Freud chamou de Durcharbeitung, literalmente o "trabalho através de," ou elaboração, - isto é, o trabalho relacionado à reflexão sobre um fato oculto por preconceitos passados e por certos compromissos com o futuro. Freud fez questão de diferenciar da mera Erinnerung (rememoração, revivência ou reedição) o gesto da elaboração, ou Durcharbeitung.

Essa noção revela-se útil para a leitura de Em liberdade - ou, talvez, para uma reescritura das muitas leituras e análises já suscitadas por essa obra. Publicada em 1982, a ficção de Silviano Santiago propõe-se criar o diário que Graciliano Ramos não escreveu ao ser libertado do cárcere a que fora submetido pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Como recorda o próprio Silviano, é a narrativa "que a esquerda da década de 30 nunca teve a coragem de escrever," pois se limitou a relatar "a experiência da prisão, a experiência do martírio, a experiência do sofrimento, da dor.³"

Graciliano Ramos morreu sem pôr no papel suas impressões dos primeiros momentos em liberdade, que no entanto havia planejado registrar, como um capítulo final às suas Memórias do cárcere. Silviano valeu-se dessa deixa para criar os manuscritos fictícios, supostamente escritos entre janeiro e de março de 1937 e confiados a um velho amigo de Graciliano. Esse, por sua vez, os teria entregado a ele, Silviano, que assume o papel de "editor" do livro, em cujas páginas Graciliano pode confessar: "Querem que eu aqui - em liberdade - volte para trás, volte para detrás das grades; não querem deixar-me construir a minha vida em liberdade, sem as peias da repressão militar e policial. Eis a armadilha."4 Silviano Santiago aceita o desafio de suplementar a obra de Graciliano, oferecendo-lhe não apenas uma possível narrativa em liberdade como também uma escrita do corpo, da intimidade, da paixão, que também foi deixada de lado pela geração do escritor alagoano, voltada sobretudo para a literatura de cunho social.

Florencia Garramuño sugere que Em liberdade se defina talvez como um "diário apócrifo"5 que se increve na forte tradição memorialista brasileira de maneira ambígua, transitando entre o discurso autobiográfico e a ficção. Uma outra voz se empresta a essa narrativa memorialista e autobiográfica quando o "editor" Silviano Santiago insere notas de rodapé ao "texto original," mesclando à ficção dados factuais e tangenciando a narrativa ensaística, o que compromete ainda mais a delineação nítida de um gênero.

Num outro estrato, Em liberdade se revela uma dobradiça entre dois momentos históricos, um passado e outro futuro, que, como o episódio do encarceramento de Graciliano, trazem para a ordem do dia a questão do papel do intelectual na sociedade. O primeiro deles surge de maneira explícita através da evocação da Inconfidência Mineira, via Cláudio Manuel da Costa, sobre cuja suposta morte por suicídio o Graciliano ficcionalizado decide escrever, depois de um sonho. O segundo é o paralelo óbvio com o momento político do Brasil dos anos 70. Esse paralelo é reiterado de maneira sub-reptícia, nas entrelinhas, quando a morte do poeta árcade e inconfidente é revestida com várias características do assassinato do jornalista Wladimir Herzog pela ditadura de Geisel. Note-se que a transcrição, nas páginas de Em liberdade, de um trecho de autoria de um suposto historiador sobre o suicídio de Cláudio Manuel da Costa é cópia literal da nota divulgada pelo DOI-CODI em 25 de outubro de 1975, quando da morte de Wladimir Herzog. Como sintetiza Idelber Avelar em seu estudo sobre a literatura latino-americana do período imediatamente pós-ditaduras, "the past is citing the future, in both senses of the verb: quoting it but at the same time summoning it to appear in court to be judged."6

É nesse texto plural, de vozes em abismo, de confluências temporais e de gênero, e escrito nos anos de luto que se seguiram à Abertura política, que Silviano Santiago promove a sua reescritura como Durcharbeitung, tanto ao elaborar o passado, no sentido estritamente psicanalítico, quanto ao realizar o seu trabalho (Arbeit) ficcional através de (durch) uma obra alheia, as Memórias do cárcere. Em suas próprias palavras, essa é uma experiência transgressora: "A paródia é mais e mais ruptura, o pastiche mais e mais imitação, mas gerando formas de transgressão que não são as canônicas da paródia. E uma das formas de transgressão, que eu utilizei e que mais incomoda, é você assumir o estilo do outro."7

É inevitável recordar Pierre Menard, cuja tarefa de escrever o Quixote talvez seja menos aparentada ao gesto de Silviano Santiago do que uma outra pequena trangressão do personagem borgeano, a de reescrever em alexandrinos o poema "Le Cimetière Marin," de Valéry, originalmente em decassílabos. O próprio Silviano evocara, uma década antes de escrever Em liberdade, esse detalhe da bibilografia de Menard, salientando que a transgressão ao modelo proposto pelo poema de Valéry situa-se nessas duas sílabas acrescentadas ao decassílabo, pequeno suplemento sonoro e diferencial que reorganiza o espaço visual e silencioso da estrofe e do poema de Valéry, modificando também o ritmo de cada verso. A originalidade, pois, da obra visível de Pierre Menard reside no pequeno suplemento de violência que instala na página branca sua presença e assinala a ruptura entre o modelo e sua cópia." Ruptura, violência, trangressão: são noções que já não funcionam para uma leitura do romance Lúcia, de Gustavo Bernardo, publicado em 1999, num cenário bastante modificado, em que já não mais reverbera o bordão da transição democrática. Trata-se, aqui, da reescritura, em tom de pastiche (nunca de paródia), de Lucíola, trazendo para o ano de 1955 as personagens criadas por José de Alencar em 1862.

A ironia alinhava o romance de Gustavo Bernardo, mesmo quando mesclada à angústia, e atinge um de seus ápices na figura de um certo professor José de Alencar, dado a surtos psico-esquizóides, que o levam a imaginar-se em 1855 - cem anos antes, portanto, da época em que é ambientado Lúcia. Diz Paulo, o narrador: "Por razões que não compreendia bem, eu vinha sendo, nos últimos anos, o único orientando do mestre Alencar. Na verdade, vinha sendo praticamente o único aluno nos seus cursos."9 Situando seu romance em plena vigência do alto modernismo no Brasil, Gustavo Bernardo aproxima romantismo, através do resgate de seu autor mais representativo, e pós-modernidade, aplainando diferenças e discordâncias, ou revisitando-as de maneira amigável, através da ironia e da auto-ironia. Estendendo um pouco mais essa reflexão, poderia ser dito que o autor transita por três tempos distintos de uma modernidade que vem se reescrevendo a si mesma: a contemporaneidade do próprio Gustavo Bernardo, o tempo em que situa o romance, o tempo evocado por esse romance.

Lúcia, a heroína de Alencar em Lucíola, é, como se sabe, uma mártir, cuja real natureza no entanto só se revela no fim do romance. Até então, é retratada como uma cortesã de personalidade ambivalente, "a mais bonita mulher do Rio de Janeiro e também a mais caprichosa e excêntrica."10 O narrador Paulo, aqui um inexperiente interiorano recém-chegado à capital, mostra-se incapaz de ver Lúcia sem o filtro das maledicências sociais. Incapaz de ver em Lúcia a Lucíola, "lampiro noturno que brilha de uma luz tão viva no seio da treva e à beira dos charcos" [p. 11]. Em outras palavras, incapaz de ler a Lúcia revelada nas entrelinhas da narrativa que começa a ser tecida pelo casal, entre intermináveis brigas e reconciliações. A cortesã, engendrada pelo meio em que vive, vê-se atada pelos preconceitos e só encontra a redenção final, naturalmente, através da morte. A sociedade carioca do Segundo Império aparece retratada em toda sua hipocrisia e decadência no romance de Alencar, e as dúvidas da própria Lúcia com relação a Paulo aparecem bem sintetizadas pelo narrador homônimo do romance de Gustavo Bernardo: "Ela, na verdade, não conhecia nenhum super-herói, não podia saber se tinha pela frente um super-amor, um super-cínico ou um super-cretino" [p. 35].

A Lúcia de Gustavo Bernardo na verdade são duas, irmãs gêmeas. De traços idênticos e roupas idênticas, uma é, no entanto, negra de olhos verdes, e a outra, loura de olhos negros. A ambigüidade da personagem romântica vê-se aqui radicalizada numa cisão real, que pode fazer pensar ainda no filme moderníssimo de Buñuel, Esse obscuro objeto do desejo. O cinema, aliás, é referência forte em Lúcia, romance que também se debruça com atenção sobre a tarefa de retratar a sociedade carioca, agora republicana. É marcante a referência a filmes, programas de rádio e automóveis, privilegiados, como se sabe, pelo imaginário modernista.

Também o jogo subentendido nas páginas de Lucíola explicita-se em Lúcia, romance construído como uma partida de xadrez, apresentando as personagens como peças e fazendo do próprio narrador um enxadrista de certo talento. As duas Lúcias, porém, Dama Branca e Dama Preta, colocam-no constantemente em xeque. Pergunta-se Paulo: "Que loucura era aquela? O próprio Alencar poderia estar por trás de tudo aquilo, armando aquele jogo - era um jogo? E, se fosse um jogo, com quantas peças eu, Paulo, ainda contava sobre o tabuleiro? As Damas (a Negra, a Branca) estavam do mesmo lado, ou em campos opostos?" [p. 110].

Couto, o vilão de Lucíola, é inocentado em Lúcia. A culpa está nas mãos do pai das duas moças, que vem a ser, agora descobrimos através de uma longa confissão, ninguém menos do que o próprio José de Alencar. Naturalmente: o cafetão é o autor. Vida e livros se intercomunicam, agora nas palavras do Paulo de Gustavo Bernardo: "Todavia, o mundo é redondo. Os livros são redondos. Nós mesmos somos feitos de matéria curva, ou seja, de memória e de invenção. Os livros, como este, reescrevem outros livros - primeiro como tragédia, depois como farsa, e adiante como tragédia novamente" [p. 178].

Ecos de Borges, mais uma vez. Aqui, no entanto, num outro nível, que irmana autores e leitores, ficção e realidade. Lúcia é, antes de mais nada, um exercício de leitura, sem se posicionar contra ou a favor do objeto dessa mesma leitura. Já não se trata de acertar as contas com o passado, ou de elaborá-lo, no sentido psicanalítico. Até mesmo porque o passado, felizmente, já não pesa.

Seria possível elencar ainda várias obras da ficção brasileira das duas últimas décadas em que o gesto da reescritura é adotado como estratégia de criação. A coleção "Literatura ou morte," da Companhia das Letras, por exemplo, caracteriza-se pelo diálogo de ficcionistas contemporâneos com autores canônicos do passado, seja ele remoto ou recente, em narrativas de cunho policial. Entre os títulos, estão Borges e os orangotangos eternos, de Luis Fernando Veríssimo, Medo de Sade, de Bernardo Carvalho, e O doente Molière, de Rubem Fonseca. Entre os autores da nova safra destacam-se Paulo Roberto Pires, que se remete, em Do amor ausente, ao clássico de Stendhal, Do amor, e Toni Marques, com Vós, uma auto-ajuda da maldade, livro que, na análise de Flávio Carneiro, "funciona como uma espécie de retomada do manifesto antropófago proposto por Oswald, reeditado agora sob nova perspectiva."¹¹ O próprio Flávio Carneiro escreve O campeonato a partir do conto homônimo de Rubem Fonseca, trazendo também para suas linhas nomes célebres do romance policial norte-americano, como Raymond Chandler e Dashiell Hammett.

Embora, como tenha sido salientado no início deste breve passeio, a reescritura não seja uma característica definidora da pós-modernidade, mas sim uma constante na práxis artística de várias épocas, esse gesto parece não mais se voltar, hoje, para um passado que se pretende corrigir ou superar. Por isso a prevalência do pastiche sobre a paródia. Reavaliando as oposições modernas entre tradição e inovação, cópia e originalidade, a consciência pós-moderna empreende o diálogo, mais do que o compromisso com a superação. Talvez a originalidade pretendida pela modernidade não fosse mais do que uma premissa falsa. No instante em que se opera, o suposto "novo" deixa de sê-lo, e essa corrida tende a se concluir no zero, na esterilidade, no silêncio catatônico que dói nos ouvidos depois que passa o barulho intenso.

A ficção Em liberdade funciona como uma espécie de rito de passagem entre dois momentos, aceitando a tarefa da elaboração dos traumas e da vivência do luto pelas utopias de várias naturezas, mas ainda vestida com o estigma da transgressão. Este princípio do século XXI, no entanto, já nos propõe a abordagem do passado na clave da leveza, valor tão convincentemente defendido por Calvino. Há um antológico poema do mestre zen Ch'ing-yuan, escrito entre os séculos VII e VIII da era cristã, que diz:

Before I studied Zen I saw mountains as mountains,

waters as waters. When I learned something of Zen,

the mountains were no longer mountains, waters no longer waters.

But now that I understand Zen, I am at peace with myself,

seeing mountains again as mountains, waters as waters.¹²

É possível que nossa contemporaneidade seja capaz de recuperar um pouco dessa espécie de "sábia inocência," e que o alardeado impasse pós-moderno, em que se falava do fim do livro e da literatura, tenha sido na verdade apenas uma ótima notícia.


--------------------------------------------------------------------------------

¹ GARRAMUÑO, Florencia. Genealogías culturales: Argentina, Brasil y Uruguay en la novela contemporánea (1981-1991). Buenos Aires: Beatriz Viterbo, 1997, p. 14.

² LYOTARD, Jean-François. L' inhumain: causeries sur le temps. Paris: Galilée, 1988, p. 43.

³ SANTIAGO, Silviano. A permanência do discurso da tradição no modernismo. In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 116.

4 Idem. Em liberdade. 4a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 61.

5 GARRAMUÑO, Florencia. Op. cit., p. 33.

6 AVELAR, Idelber. The untimely present: Post-dictatorial Latin-American fiction and the task of mourning. Durham and London: Duke University Press, 1999, p. 160.

7 SANTIAGO, Silviano. A permanência do discurso da tradição no modernismo. In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 117.

8 Idem. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos. 2a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 24.

9 BERNARDO, Gustavo. Lúcia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999, p. 16.

¹º ALENCAR, José de. Lucíola. 18a ed. São Paulo: Ática, 1994, P. 28.

¹¹ CARNEIRO, Flávio. Inusitado jantar antropofágico. In: Jornal do Brasil, Caderno Idéias, Rio de Janeiro, p. 5, 27 de janeiro de 2001.

¹² LEVERING, Miriam & STYRK, Lucien. Zen: images, texts and teachings. New York: Artisan, 2000, p. 8.